quinta-feira, 28 de abril de 2011

Conto por Machado de Assis

Venho, através desse conto, demonstrar meu grande apreço por Machado de Assis. Não somente pelos fatos vividos por ele, mas também por representar um grande escritor da nossa literatura! A temática básica desse conto é a oposição entre vocação e ambição, e mais uma vez, venho demonstrar minha opinião acerca do assunto: o homem tornou-se tão ambicioso que, querendo sempre ser o melhor, não aceita, muitas vezes, o que é a sua vocação, e por isso, pode viver uma vida inteiramente triste e angustiado. Aceitemos, então, nossas vocações e trabalhemos com ela para melhorarmos a sociedade! Abraço fraternal a todos os leitores.
                                      
                                                


                                                       Um Homem Célebre


— AH! o SENHOR é que é o Pestana? perguntou Sinhazinha Mota, fazendo

um largo gesto admirativo. E logo depois, corrigindo a familiaridade: —

Desculpe meu modo, mas. .. é mesmo o senhor?

Vexado, aborrecido, Pestana respondeu que sim, que era ele. Vinha do

piano, enxugando a testa com o lenço, e ia a chegar à janela, quando a moça

o fez parar. Não era baile; apenas um sarau íntimo, pouca gente, vinte

pessoas ao todo, que tinham ido jantar com a viúva Camargo, Rua do Areal,

naquele dia dos anos dela, cinco de novembro de 1875... Boa e patusca

viúva! Amava o riso e a folga, apesar dos sessenta anos em que entrava, e

foi a última vez que folgou e riu, pois faleceu nos primeiros dias de 1876.

Boa e patusca viúva! Com que alma e diligência arranjou ali umas danças,

logo depois do jantar, pedindo ao Pestana que tocasse uma quadrilha! Nem

foi preciso acabar o pedido; Pestana curvou-se gentilmente, e correu ao

piano. Finda a quadrilha, mal teriam descansado uns dez minutos, a viúva

correu novamente ao Pestana para um obséquio mui particular.

— Diga, minha senhora.

— É que nos toque agora aquela sua polca Não Bula Comigo, Nhonhô.

Pestana fez uma careta, mas dissimulou depressa, inclinou-se calado, sem

gentileza, e foi para o piano, sem entusiasmo. Ouvidos os primeiros

compassos, derramou-se pela sala uma alegria nova, os cavalheiros correram

às damas, e os pares entraram a saracotear a polca da moda. Da moda, tinha

sido publicada vinte dias antes, e já não havia recanto da cidade em que não

fosse conhecida. Ia chegando à consagração do assobio e da cantarola

noturna.

Sinhazinha Mota estava longe de supor que aquele Pestana que ela vira à

mesa de jantar e depois ao piano, metido numa sobrecasaca cor de rapé,

cabelo negro, longo e cacheado, olhos cuidosos, queixo rapado, era o mesmo

Pestana compositor; foi uma amiga que lho disse quando o viu vir do piano,

acabada a polca. Daí a pergunta admirativa. Vimos que ele respondeu

aborrecido e vexado. Nem assim as duas moças lhe pouparam finezas, tais e

tantas, que a mais modesta vaidade se contentaria de as ouvir; ele recebeu-as

cada vez mais enfadado, até que, alegando dor de cabeça, pediu licença para

sair. Nem elas, nem a dona da casa, ninguém logrou retê-lo. Ofereceram-lhe

remédios caseiros, algum repouso, não aceitou nada, teimou em sair e saiu.

Rua fora, caminhou depressa, com medo de que ainda o chamassem; só

afrouxou, depois que dobrou a esquina da Rua Formosa. Mas aí mesmo

esperava-o a sua grande polca festiva. De uma casa modesta, à direita, a

poucos metros de distância, saíam as notas da composição do dia, sopradas

em clarineta. Dançava-se. Pestana parou alguns instantes, pensou em

arrepiar caminho, mas dispôs-se a andar, estugou o passo, atravessou a rua, e

seguiu pelo lado oposto ao da casa do baile. As notas foram-se perdendo, ao

longe, e o nosso homem entrou na Rua do Aterrado, onde morava. Já perto

de casa, viu vir dois homens: um deles, passando rentezinho com o Pestana,

começou a assobiar a mesma polca, rijamente, com brio, e o outro pegou a

tempo na música, e aí foram os dois abaixo, ruidosos e alegres, enquanto o

autor da peça, desesperado, corria a meter-se em casa.

Em casa, respirou. Casa velha. escada velha. um preto velho que o servia,

e que veio saber se ele queria cear.

— Não quero nada, bradou o Pestana: faça-me café e vá dormir.

Despiu-se, enfiou uma camisola, e foi para a sala dos fundos. Quando o

preto acendeu o gás da sala, Pestana sorriu e, dentro d'alma, cumprimentou

uns dez retratos que pendiam da parede. Um só era a óleo, o de um padre,

que o educara, que lhe ensinara latim e música, e que, segundo os ociosos,

era o próprio pai do Pestana. Certo é que lhe deixou em herança aquela casa

velha, e os velhos trastes, ainda do tempo de Pedro I. Compusera alguns

motetes o padre, era doudo por música, sacra ou profana, cujo gosto incutiu

no moço, ou também lhe transmitiu no sangue, se é que tinham razão as

bocas vadias, cousa de que se não ocupa a minha história, como ides ver.

Os demais retratos eram de compositores clássicos, Cimarosa, Mozart,

Beethoven, Gluck, Bach, Schumann, e ainda uns três, alguns, gravados,

outros litografados, todos mal encaixilhados e de diferente tamanho, mas

postos ali como santos de uma igreja. O piano era o altar; o evangelho da

noite lá estava aberto: era uma sonata de Beethoven.

Veio o café; Pestana engoliu a primeira xícara, e sentou-se ao piano.

Olhou para o retrato de Beethoven, e começou a executar a sonata, sem

saber de si, desvairado ou absorto, mas com grande perfeição. Repetiu a

peça, depois parou alguns instantes, levantou-se e foi a uma das janelas.

Tornou ao piano; era a vez de Mozart, pegou de um trecho, e executou-o do

mesmo modo, com a alma alhures. Haydn levou-o à meia-noite e à segunda

xícara de café.

Entre meia-noite e uma hora, Pestana pouco mais fez que estar à janela e

olhar para as estrelas, entrar e olhar para os retratos. De quando em quando

ia ao piano, e, de pé, dava uns golpes soltos no teclado, como se procurasse

algum pensamento mas o pensamento não aparecia e ele voltava a encostarse

à janela. As estrelas pareciam-lhe outras tantas notas musicais fixadas no

céu à espera de alguém que as fosse descolar; tempo viria em que o céu

tinha de ficar vazio, mas então a terra seria uma constelação de partituras.

Nenhuma imagem, desvario ou reflexão trazia uma lembrança qualquer de

Sinhazinha Mota, que entretanto, a essa mesma hora, adormecia, pensando

nele, famoso autor de tantas polcas amadas. Talvez a idéia conjugal tirou à

moça alguns momentos de sono. Que tinha? Ela ia em vinte anos, ele em

trinta, boa conta. A moça dormia ao som da polca, ouvida de cor, enquanto o

autor desta não cuidava nem da polca nem da moça, mas das velhas obras

clássicas, interrogando o céu e a noite, rogando aos anjos, em último caso ao

diabo. Por que não faria ele uma só que fosse daquelas páginas imortais?

Às vezes, como que ia surgir das profundezas do inconsciente uma aurora

de idéia: ele corria ao piano para aventá-la inteira, traduzi-la, em sons, mas

era em vão: a idéia esvaía-se. Outras vezes, sentado, ao piano, deixava os

dedos correrem, à ventura, a ver se as fantasias brotavam deles, como dos de

Mozart: mas nada, nada, a inspiração não vinha, a imaginação deixava-se

estar dormindo. Se acaso uma idéia aparecia, definida e bela, era eco apenas

de alguma peça alheia, que a memória repetia, e que ele supunha inventar.

Então, irritado, erguia-se, jurava abandonar a arte, ir plantar café ou puxar

carroça: mas daí a dez minutos, ei-lo outra vez, com os olhos em Mozart, a

imitá-lo ao piano.

Duas, três, quatro horas. Depois das quatro foi dormir; estava cansado,

desanimado, morto; tinha que dar lições no dia seguinte. Pouco dormiu;

acordou às sete horas. Vestiu-se e almoçou.

— Meu senhor quer a bengala ou o chapéu-de-sol? perguntou o preto,

segundo as ordens que tinha. porque as distrações do senhor eram

freqüentes.

— A bengala.

— Mas parece que hoje chove.

— Chove, repetiu Pestana maquinalmente.

— Parece que sim, senhor, o céu está meio escuro.

Pestana olhava para o preto, vago, preocupado. De repente:

— Espera aí.

Correu à sala dos retratos, abriu o piano, sentou-se e espalmou as mãos no

teclado. Começou a tocar alguma cousa própria, uma inspiração real e

pronta, uma polca, uma polca buliçosa, como dizem os anúncios. Nenhuma

repulsa da parte do compositor; os dedos iam arrancando as notas, ligandoas,

meneando-as; dir-se-ia que a musa compunha e bailava a um tempo.

Pestana esquecera as discípulas, esquecera o preto, que o esperava com a

bengala e o guarda-chuva, esquecera até os retratos que pendiam gravemente

da parede. Compunha só, teclando ou escrevendo, sem os vãos esforços da

véspera, sem exasperação, sem nada pedir ao céu, sem interrogar os olhos de

Mozart. Nenhum tédio. Vida, graça, novidade, escorriam-lhe da alma como

de uma fonte perene.

Em pouco tempo estava a polca feita. Corrigiu ainda alguns pontos,

quando voltou para jantar: mas já a cantarolava, andando, na rua. Gostou

dela; na composição recente e inédita circulava o sangue da paternidade e da

vocação. Dois dias depois, foi levá-la ao editor das outras polcas suas, que

andariam já por umas trinta. O editor achou-a linda.

— Vai fazer grande efeito.

Veio a questão do título. Pestana, quando compôs a primeira polca, em

1871, quis dar-lhe um título poético, escolheu este: Pingos de Sol. O editor

abanou a cabeça, e disse-lhe que os títulos deviam ser, já de si, destinados à

popularidade, ou por alusão a algum sucesso do dia, — ou pela graça das

palavras; indicou-lhe dois: A Lei de 28 de Setembro, ou Candongas Não

Fazem Festa.

— Mas que quer dizer Candongas Não Fazem Festa? perguntou o autor.

— Não quer dizer nada, mas populariza-se logo.

Pestana, ainda donzel inédito, recusou qualquer das denominações e

guardou a polca, mas não tardou que compusesse outra, e a comichão da

publicidade levou-o a imprimir as duas, com os títulos que ao editor

parecessem mais atraentes ou apropriados. Assim se regulou pelo tempo

adiante.

Agora, quando Pestana entregou a nova polca, e passaram ao título, o

editor acudiu que trazia um, desde muitos dias, para a primeira obra que ele

lhe apresentasse, título de espavento, longo e meneado. Era este: Senhora

Dona, Guarde o Seu Balaio.

— E para a vez seguinte, acrescentou, já trago outro de cor.

Pestana, ainda donzel inédito, recusou qualquer das denominações

compositor bastava à procura; mas a obra em si mesma era adequada ao

gênero, original, convidava a dançá-la e decorava-se depressa. Em oito dias,

estava célebre. Pestana, durante os primeiros, andou deveras namorado da

composição, gostava de a cantarolar baixinho, detinha-se na rua, para ouvila

tocar em alguma casa, e zangava-se quando não a tocavam bem. Desde

logo, as orquestras de teatro a executaram, e ele lá foi a um deles. Não

desgostou também de a ouvir assobiada, uma noite, por um vulto que descia

a Rua do Aterrado.

Essa lua-de-mel durou apenas um quarto de lua. Como das outras vezes, e

mais depressa ainda, os velhos mestres retratados o fizeram sangrar de

remorsos. Vexado e enfastiado, Pestana arremeteu contra aquela que o viera

consolar tantas vezes, musa de olhos marotos e gestos arredondados, fácil e

graciosa. E aí voltaram as náuseas de si mesmo, o ódio a quem lhe pedia a

nova polca da moda, e juntamente o esforço de compor alguma cousa ao

sabor clássico, uma página que fosse, uma só, mas tal que pudesse ser

encadernada entre Bach e Schumann. Vão estudo, inútil esforço.

Mergulhava naquele Jordão sem sair batizado. Noites e noites, gastou-as

assim, confiado e teimoso, certo de que a vontade era tudo, e que, uma vez

que abrisse mão da música fácil...

— As polcas que vão para o inferno fazer dançar o diabo, disse ele um dia,

de madrugada, ao deitar-se.

Mas as polcas não quiseram ir tão fundo. Vinham à casa de Pestana, à

própria sala dos retratos, irrompiam tão prontas, que ele não tinha mais que

o tempo de as compor, imprimi-las depois, gostá-las alguns dias, aborrecêlas,

e tornar às velhas fontes, donde lhe não manava nada. Nessa alternativa

viveu até casar, e depois de casar.

— Casar com quem? perguntou Sinhazinha Mota ao tio escrivão que lhe deu

aquela notícia.

— Vai casar com uma viúva.

— Velha?

— Vinte e sete anos.

— Bonita?

— Não, nem feia, assim, assim. Ouvi dizer que ele se enamorou dela, porque

a ouviu cantar na última festa de S. Francisco de Paula. Mas ouvi também

que ela possui outra prenda, que não é rara, mas vale menos: está tísica.

Os escrivães não deviam ter espírito, — mau espírito, quero dizer. A

sobrinha deste sentiu no fim um pingo de bálsamo, que lhe curou a

dentadinha da inveja. Era tudo verdade. Pestana casou daí a dias com uma

viúva de vinte e sete anos, boa cantora e tísica. Recebeu-a como a esposa

espiritual do seu gênio. O celibato era, sem dúvida, a causa da esterilidade e

do transvio, dizia ele consigo, artisticamente considerava-se um arruador de

horas mortas; tinha as polcas por aventuras de petimetres. Agora, sim, é que

ia engendrar uma família de obras sérias, profundas, inspiradas e

trabalhadas.

Essa esperança abotoou desde as primeiras horas do amor, e desabrochou

à primeira aurora do casamento. Maria, balbuciou a alma dele, dá-me o que

não achei na solidão das noites, nem no tumulto dos dias.

Desde logo, para comemorar o consórcio, teve idéia de compor um

noturno. Chamar-lhe-ia Ave, Maria. A felicidade como que lhe trouxe um

princípio de inspiração; não querendo dizer nada à mulher, antes de pronto,

trabalhava às escondidas; cousa difícil porque Maria, que amava igualmente

a arte, vinha tocar com ele, ou ouvi-lo somente, horas e horas, na sala dos

retratos. Chegaram a fazer alguns concertos semanais, com três artistas,

amigos do Pestana. Um domingo, porém, não se pôde ter o marido, e

chamou a mulher para tocar um trecho do noturno; não lhe disse o que era

nem de quem era. De repente, parando, interrogou-a com os olhos.

— Acaba, disse Maria, não é Chopin?

Pestana empalideceu, fitou os olhos no ar, repetiu um ou dois trechos e

ergueu-se. Maria assentou-se ao piano, e, depois de algum esforço de

memória, executou a peça de Chopin. A idéia, o motivo eram os mesmos;

Pestana achara-os em algum daqueles becos escuros da memória, velha

cidade de traições. Triste, desesperado, saiu de casa, e dirigiu-se para o lado

da ponte, caminho de S. Cristóvão.

— Para que lutar? dizia ele. Vou com as polcas. . . Viva a polca!

Homens que passavam por ele, e ouviam isto, ficavam olhando, como

para um doudo. E ele ia andando, alucinado, mortificado, eterna peteca entre

a ambição e a vocação. . . Passou o velho matadouro; ao chegar à porteira da

estrada de ferro, teve idéia de ir pelo trilho acima e esperar o primeiro trem

que viesse e o esmagasse. O guarda fê-lo recuar. Voltou a si e tornou a casa.

Poucos dias depois, — uma clara e fresca manhã de maio de 1876, —

eram seis horas, Pestana sentiu nos dedos um frêmito particular e conhecido.

Ergueu-se devagarinho, para não acordar Maria, que tossira toda noite, e

agora dormia profundamente. Foi para a sala dos retratos, abriu o piano, e, o

mais surdamente que pôde, extraiu uma polca. Fê-la publicar com um

pseudônimo; nos dois meses seguintes compôs e publicou mais duas. Maria

não soube nada; ia tossindo e morrendo, até que expirou, uma noite, nos

braços do marido, apavorado e desesperado.

Era noite de Natal. A dor do Pestana teve um acréscimo, porque na

vizinhança havia um baile, em que se tocaram várias de suas melhores

polcas. Já o baile era duro de sofrer; as suas composições davam-lhe um ar

de ironia e perversidade. Ele sentia a cadência dos passos, adivinhava os

movimentos, porventura lúbricos, a que obrigava alguma daquelas

composições; tudo isso ao pé do cadáver pálido, um molho de ossos,

estendido na cama... Todas as horas da noite passaram assim, vagarosas ou

rápidas, úmidas de lágrimas e de suor, de águas-da-colônia e de Labarraque ,

saltando sem parar, como ao som da polca de um grande Pestana invisível.

Enterrada a mulher, o viúvo teve uma única preocupação: deixar a

música, depois de compor um Requiem, que faria executar no primeiro

aniversário da morte de Maria. Escolheria outro emprego, escrevente,

carteiro, mascate, qualquer cousa que lhe fizesse esquecer a arte assassina e

surda.

Começou a obra; empregou tudo, arrojo, paciência, meditação, e até os

caprichos do acaso, como fizera outrora, imitando Mozart. Releu e estudou o

Requiem deste autor. Passaram-se semanas e meses. A obra, célere a

princípio, afrouxou o andar. Pestana tinha altos e baixos. Ora achava-a

incompleta. não lhe sentia a alma sacra, nem idéia, nem inspiração, nem

método; ora elevava-se-lhe o coração e trabalhava com vigor. Oito meses,

nove, dez, onze, e o Requiem não estava concluído. Redobrou de esforços,

esqueceu lições e amizades. Tinha refeito muitas vezes a obra; mas agora

queria concluí-la, fosse como fosse. Quinze dias, oito, cinco... A aurora do

aniversário veio achá-lo trabalhando.

Contentou-se da missa rezada e simples, para ele só. Não se pode dizer se

todas as lágrimas que lhe vieram sorrateiramente aos olhos, foram do

marido, ou se algumas eram do compositor. Certo é que nunca mais tornou

ao Requiem.

"Para quê?" dizia ele a si mesmo.

Correu ainda um ano. No princípio de 1878, apareceu-lhe o editor.

— Lá vão dois anos, disse este, que nos não dá um ar da sua graça. Toda a

gente pergunta se o senhor perdeu o talento. Que tem feito?

— Nada.

— Bem sei o golpe que o feriu; mas lá vão dois anos. Venho propor-lhe um

contrato: vinte polcas durante doze meses; o preço antigo, e uma

porcentagem maior na venda. Depois, acabado o ano, podemos renovar.

Pestana assentiu com um gesto. Poucas lições tinha, vendera a casa para

saldar dívidas, e as necessidades iam comendo o resto, que era assaz

escasso. Aceitou o contrato.

— Mas a primeira polca há de ser já, explicou o editor. É urgente. Viu a

carta do Imperador ao Caxias? Os liberais foram chamados ao poder, vão

fazer a reforma eleitoral. A polca há de chamar-se: Bravos à Eleição Direta!

Não é política; é um bom título de ocasião.

Pestana compôs a primeira obra do contrato. Apesar do longo tempo de

silêncio, não perdera a originalidade nem a inspiração. Trazia a mesma nota

genial. As outras polcas vieram vindo, regularmente. Conservara os retratos

e os repertórios; mas fugia de gastar todas as noites ao piano, para não cair

em novas tentativas. Já agora pedia uma entrada de graça, sempre que havia

alguma boa ópera ou concerto de artista ia, metia-se a um canto, gozando

aquela porção de cousas que nunca lhe haviam de brotar do cérebro. Uma ou

outra vez, ao tornar para casa, cheio de música, despertava nele o maestro

inédito; então, sentava-se ao piano, e, sem idéia, tirava algumas notas, até

que ia dormir, vinte ou trinta minutos depois.

Assim foram passando os anos, até 1885. A fama do Pestana dera-lhe

definitivamente o primeiro lugar entre os compositores de polcas; mas o

primeiro lugar da aldeia não contentava a este César, que continuava a

preferir-lhe, não o segundo, mas o centésimo em Roma. Tinha ainda as

alternativas de outro tempo, acerca de suas composições a diferença é que

eram menos violentas. Nem entusiasmo nas primeiras horas, nem horror

depois da primeira semana; algum prazer e certo fastio.

Naquele ano, apanhou uma febre de nada, que em poucos dias cresceu, até

virar perniciosa. Já estava em perigo, quando lhe apareceu o editor, que não

sabia da doença, e ia dar-lhe notícia da subida dos conservadores, e pedir-lhe

uma polca de ocasião. O enfermeiro, pobre clarineta de teatro , referiu-lhe o

estado do Pestana , de modo que o editor entendeu calar-se. O doente é que

instou para que lhe dissesse o que era, o editor obedeceu.

— Mas há de ser quando estiver bom de todo, concluiu.

— Logo que a febre decline um pouco, disse o Pestana.

Seguiu-se uma pausa de alguns segundos. O clarineta foi pé ante pé

preparar o remédio; o editor levantou-se e despediu-se.

— Adeus.

— Olhe, disse o Pestana, como é provável que eu morra por estes dias, façolhe

logo duas polcas; a outra servirá para quando subirem os liberais.

Foi a única pilhéria que disse em toda a vida, e era tempo, porque expirou

na madrugada seguinte, às quatro horas e cinco minutos, bem com os

homens e mal consigo mesmo.

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